TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 11 - Novembro 2009
Crônica - José Miranda Filho

O Velório

Velorio, Felipe Morales (Oaxaca, Mexico), Aquatint, (9 1/2" x 11 1/2"), 1998


Recostado num velho sofá de couro rasgado colocado no último canto do imenso corredor, Miguel adormecia. Roncava boquiaberto, babando sobre o colarinho da camisa. Os amigos e os familiares do extinto, passavam por ele, ou ignorando-o, ou ajuizando falsas impressões; alguns imaginavam embriagues, enquanto outros o olhavam sem nada aduzir. Ali estava um homem cansado que havia passado a noite ao lado do melhor amigo que tivera, e que por um instante infeliz que sói acontecer quando menos se espera, repentinamente lhe tirara a vida.

Quatro grandes velas em castiçais de prata, duas em cada extremidade do ataúde coberto de cravos vermelhos e rosas amarelas, ardiam incessantemente, apesar da luz do dia. O corpo jazia sereno com as mãos entrelaçadas sobre o coração e coberto por um véu branco e rendado. Dava a impressão de estar dormindo, não fossem os hematomas que lhe deixaram marcas profundas em torno da cabeça. Os pais, esposa e filhos, em pé ao lado do corpo, recebiam os pesares pelo falecimento. Com os olhos lacrimejados, Miguel levantou-se atordoado pelo burburinho da multidão, e dirigiu-se ao caixão para dar seu último adeus. Ninguém o conhecia, nem mesmo a mulher sabia da amizade profunda que os unia.

Miguel morava numa cidade distante e só se encontrava com Josué ao final de cada ano. Reviviam uma amizade iniciada na infância... e mantinham um segredo, um pacto que selaram havia 40 anos, quando tinham apenas 11 anos de idade...

Era noite de lua cheia, sob um céu furiosamente estrelado. Josué e Miguel presenciaram algo que marcaria suas vidas para sempre... e a melhor maneira que encontraram, em suas cabeças infantis, de lidar com tão chocante e reveladora experiência, seria um pacto... um pacto de sangue, onde virariam as costas um para o outro e só se encontrariam uma vez por ano num lugar previamente determinado no ano anterior, para garantir que estavam bem e que ninguém havia quebrado o silêncio. Prometeram que só revelariam aquilo às suas famílias, amigos, e a quem quer que fosse, após 40 anos! Mas o tempo é incomensurável, e 40 anos de uns não são os mesmos 40 anos de outros, e a vida se desenrolou diferentemente para ambos; enquanto Josué conseguiu seguir em frente, prosperar e constituir uma família, Miguel entregou-se à solidão das bebidas e da companhia vazia das mulheres da vida, numa gradual e interminável destruição.

A última vez que estiveram juntos foi há um mês, num pequeno sítio à beira do Rio Paraná. Faltava ainda 7 anos para que revelassem seu terrível segredo ao mundo, mas Miguel não aguentava mais... o peito lhe doía, a cabeça lhe pesava... "Minha consciência não me deixa em paz, Josué... eu preciso desabafar... preciso falar... preciso me livrar disso que me mata!", mas Josué não arredava pé: "O pacto, Miguel... o pacto ainda deve perdurar por mais sete anos! Não podemos quebrá-lo ou...". Josué e Miguel discutiram naquela noite. Brigaram feio, e ao voltar para São Paulo, transtornado, Josué é apanhado por um caminhão desgovernado, dirigido por um motorista bêbado, ceifando-lhe a vida.

Miguel teria agora muito mais do que sete anos para amargurar em seu peito...