TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano I Número 11 - Novembro 2009
Ensaio - Ronald Augusto

Junto à estátua, burla de Luís Gama



Poema escrito em versos decassílabos brancos, isto é, não rimados, cuja acentuação oscila entre heróica (as tônicas caem nas 6a e 10¬a sílabas) e sáfica (tônicas nas 4a, 8a e 10a sílabas). Contudo, no interior dos versos se constata, além de muitas correspondências fono-semânticas que mobilizam e potencializam o entrecho textual, a ocorrência de assonâncias, rimas toantes, tais como: membros/quedos, sentado/lago, ramos/manso, escravo/raios, furtiva/notívagas, etc. Em outro passo, o vislumbre de um virtual palíndromo misturado a mais assonâncias e traços aliterantes em / t /, quando o poeta sente o “graTo aroma” entre os “TorTos ramos”. Nos dois primeiros quartetos, também encontramos a interessante teia paronomástica “marmor/amor/mar”, que numa investida hermenêutica sem pretensão de ser exaustiva, autorizada, por sua vez, pela interpretação referencial do poema, se poderia ler, por exemplo, assim: o amor pertinaz enfrenta o mar iracundo – as resistências do entorno –, mas termina, num jogo cambiante de anagramatização, deparando a mudez do mármore estatuário, como óbice étnico-social. Mais abaixo, esta seqüência será desenvolvida.

O poema “Junto à estátua” (Trovas burlescas, 1859-1861) apresenta, portanto, uma composição sonora mais orgânica, para cuja beleza contribui, mesmo, a liberdade no uso franco de diversos tipos de estrofes. Luís Gama lesa as regras da versificação conferindo ao poema uma pulsão transgressora com relação aos modelos em que a funcionalidade expressiva começa a afrouxar. A par disso, não se pode perder de mira que o poeta é representante do “duro” em contraste com o “suave” na arte da poesia. Ele se insere numa cidade estilística que tem em perspectiva a retórica do escárnio e do maldizer. Por conseguinte, objeções como as que partem, inclusive, de alguns organizadores e comentadores de suas obras, afirmando que Luís Gama “não prima pela beleza formal” e que sua rima “às vezes é paupérrima”, caracterizam bem a expressão espirituosa que faz broma da tentativa descabida daquele que pretende colher “pêras ao olmo”. Uma visão apenas “sério-estética” da literatura, ao cobrar o que, aparentemente, falta à poesia de Luís Gama, não percebe o que ela contém.

Assim, embora Luís Gama não se vexe de tomar emprestado de Camões uns clássicos versos renascentistas para epigrafar sua pequena grande obra – e incorpore, mesmo, algo da atmosfera e do estoque imagético com que o poeta lusitano esboça uma cena bucólica –, não há um padrão estrófico estabelecido de antemão ao qual se submeta, nem a filiação restritiva do autor às exigências de uma ourivesaria do verso. Por entre os vazios fragrantes da estrofe camoniana, Gama põe em circulação um surdo gracejo. O poeta nos faz saltar do quarteto para a sétima, desta para um grupo de tercetos e outro quarteto, depois nos abandona numa estrofe de onze versos e, em seguida, nos convida a enfrentar um sexteto, etc. As estrofes se acomodam ao “clima”, aos sobressaltos da matéria narrada. O poema é concluído com quatro “quadras ao gosto popular” em redondilha menor, versos de cinco sílabas, mas, desta vez, com rimas consoantes. As quadras (“...canções, ternas endeixas”), vazadas numa fanopéia “pó de arroz”, preservam, no entanto, um tom gostoso e melancólico de cantiga que alude à estética do “domínio público”, onde a ingenuidade premeditada – ou, ainda, kitschizada – se configura em post-scriptum mitigador da “desilusão amorosa” a que é submetido o espírito desta voz de inflexão romântico-parnasiana condutora do poema.

Resumindo um pouco, o poema trata do pesadelo persecutório do eros inter-racial, onde estão em causa, no julgamento e na censura determinados pela sociedade, a hýbris do negro que inspeciona território que lhe é vedado e o rebaixamento da presumida pureza do branco envolvidos nessa variedade de contrato amoroso. Por outro lado, é interessante notar que Luís Gama não condena nem absolve a perplexidade da persona negra no instante em que percebe, depois da estranha noite de prazer entre “aéreos sonhos”, que, agora, tem em seus braços apenas o “grosseiro mármore” de uma estátua gelada. Quando muito, o poeta deixa em aberto um quase-riso com relação ao auto-engano, pois ele talvez se veja implicado no logro, a um só tempo, ingênuo e complexo que materializa no poema.

À parte, resta o “estado de coisas” pré-abolicionista, pois: “longe do mundo, das escravas turbas”, o “túmido Tritão” acolhe em seus “lábios negros” a “virgem de nevado colo,/ de garços olhos, de cabelos de ouro”, e em seu delírio lírico voa “com ela às regiões etéreas”. O mármore final, a estátua em que se transforma, ou se revela, o obscuro objeto do desejo do poeta-Tritão, rivaliza – dentro de uma perspectiva sincrônica – com a metáfora da parede tremenda de preconceitos tematizada por Cruz e Sousa no poema em prosa “Emparedado” (Evocações, 1898). A dialética da interdição e da auto-interdição no corte indeciso entre o privado e o público “à sombra/ da infernal ventura” de seu tempo.
Junto à estátua – Luís Gama
(NO JARDIM BOTÂNICO DA CIDADE DE S. PAULO)

Já a saudosa Aurora destoucava
Os seus cabelos de ouro delicados,

E as boninas nos campos esmaltados

De cristalino orvalho borrifava.

CAMÕES – Soneto

Em plácida manhã serena e pura,
Sentado à borda de espaçoso lago;
O corpo recostado em frio marmor,
Tórridos membros sobre a terra quedos.

Qual túmido Tritão de amor vencido,
Transpondo as serras, iracundos mares,
D’Aurora o berço perscrutando ousado,
Dolorosos suspiros exalava

Meu frágil peito da natura escravo.
Já nas fúlgidas portas do Oriente,
Trajando púrpura majestoso assoma
Luzeiro ardente, que expandindo os raios,
Deslumbra os olhos, e a razão sucumbe,
E, com furtiva luz, pálidas fogem
Notívagas esferas cintilantes.

As brandas auras perfumadas vinham
De grato aroma que invejara Meca
Nos tortos ramos assoprar de manso.

Em nuvens brancas lá do céu caía
Pranto saudoso que derrama a Aurora,
Que a terra orvalha, que floreia os prados.

Longe do mundo, das escravas turbas,
Que o ouro compra de avarentos Cresos,
A minh’alma aos delírios se entregava,
À sombra de ilusões – de aéreos sonhos.

Formosa virgem de nevado colo,
De garços olhos, de cabelos louros;
Sanguíneos lábios, elegante porte,
Mimoso rosto de Ericina bela,
Curvando o seio de alabastro fino,
Mimosa imprime nos meus lábios negros
Gostoso beijo de volúpia ardente! –
Vencido de prazer, nadando em gozos,
Já temeroso pé movendo incerto,
Vôo com ela às regiões etéreas
Nas tênues asas de ternura infinda.
.........................................................................

Rasgando o véu das ilusões mentidas,
Que est’alma frágil seduzir puderam,
Imóvel terra, cambiantes flores,
Viram meus olhos no romper da Aurora;
E dentre os braços, que cerrados tinha,
Gelada estátua de grosseiro mármore!...

Cândidas boninas
E púrpuras rosas,
Violetas roxas
Do luar saudosas;

Verdejantes murtas,
Redolentes cravos,
Lindas papoulas
Da donzela escravos,

Ao soprar da brisa
Em balanço undoso,
O mortal encantam
Num sonhar gostoso.

Mas fugindo as nuvens
– Que a ilusão fulgura,
Só vagueia à sombra
Da infernal ventura.

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog poesia-pau.